O Código de Processo Civil (CPC) de 2015 inovou ao prever que a desconsideração da personalidade jurídica deva ser precedida de um incidente, por meio do qual o sócio ou administrador a ser incluído em processo movido contra a sociedade terá direito ao contraditório antes que se cogite de penhora de seus bens. Apesar desse avanço legislativo, benéfico à ampla defesa, é certo que o novo instituto trouxe algumas inseguranças. Uma delas, objeto central desta análise, é o marco inicial para caracterização da fraude à execução em razão da alienação ou oneração de bens por parte do sócio ou administrador atingido pela desconsideração da personalidade jurídica.

Como se sabe, respeitadas determinadas condições previstas no art. 792 do CPC de 2015, o juiz tem o poder de decretar ineficaz alienação ou oneração de bens que tornem o devedor insolvente e impeçam a satisfação do credor.

Como regra geral (art.792, I), só se considera em fraude à execução a alienação ou oneração de bens sujeitos a registro (imóveis e veículos) após averbação da constrição judicial. Quanto a bens não sujeitos a registro (bens móveis em geral), não haverá fraude se o terceiro adquirente provar que levantou certidões de distribuidores forenses em nome do devedor alienante, as quais revelaram que não pendiam contra ele processos capazes de reduzi-lo à insolvência (art.792, II). Essas disposições claramente protegem a boa-fé do terceiro adquirente.

Contudo, da leitura dos arts. 137 e 792, §3º, infere-se ser diferente o marco inicial para decretar fraude à execução de bens alienados ou onerados pelo sócio passível de ser atingido pela desconsideração da personalidade jurídica.

O artigo 137 diz que “acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente”. Por sua vez, o art. 792, §3º, dispõe que “nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, a fraude à execução verifica-se a partir da citação da parte cuja personalidade pretende desconsiderar”.

Segundo se pode extrair dessas disposições, o marco inicial para configuração da fraude à execução por parte do sócio ou administrador atingido por desconsideração da personalidade jurídica ocorre com a simples citação da pessoa jurídica, e não segundo a regra geral, que, repita-se, exige a averbação pública da constrição ou, ao menos, a existência de apontamento em nome do alienante nos distribuidores forenses.

A prevalecer essa interpretação poder-se-ia entender que, para realizar qualquer alienação ou oneração de bens, não bastaria ao adquirente tomar os cuidados ordinários acima referidos. Seria necessário também verificar se o alienante é ou foi sócio ou administrador de alguma sociedade e se ela já foi citada em processos judiciais capazes de torná-la insolvente.

No mais das vezes, será virtualmente impossível descobrir essas informações e, ainda que assim não fosse, restaria sensivelmente encarecida a burocracia prévia aos negócios. Essas disposições devem ser interpretadas segundo a cláusula geral de boa-fé (art. 5º do CPC de 2015), de modo que se o adquirente tomou as cautelas ordinárias devidas, não poderá ser atingido pela decretação de fraude à execução ocorrida em relação ao sócio de empresa cuja personalidade foi desconsiderada.

Diante disso, deve-se recorrer à interpretação sistemática das normas apontadas. Apesar de o marco inicial para reconhecimento da fraude ocorrer com a citação da sociedade, não parece razoável aceitar possa o autor da demanda proceder às averbações junto ao registro do patrimônio dos sócios.

A pendência do processo tratada pelos incisos I e II do artigo 792 deve ser aquele destinado à extensão da responsabilidade aos sócios, que depende da instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Não se mostra adequado, portanto, dizer que a averbação pretendida seja da demanda principal, movida contra a sociedade.

O caso mais grave reside na hipótese de bens não sujeitos a registro. Mesmo após muito tempo, a esse terceiro recairá o ônus de demonstrar que o negócio realizado com o sócio foi de boa-fé e que não se poderia prever, àquela altura, que futura desconsideração fosse afetar a higidez da relação. Acreditamos, assim, ser necessário proteger do terceiro de boa-fé em face do mero risco de desconsideração.

De todo modo, conviria que em contratos (públicos e privados) de compra e venda de bens, os adquirentes insiram cláusula pela qual o alienante afirma, sob as penas legais, não ser atual ou anteriormente sócio ou administrador de empresa que responde a processo judicial ou, ao menos, que a empresa possui patrimônio suficiente para adimplemento.

Heitor Vitor Mendonça Sica e Elie Pierre Eid são, respectivamente, professor de direito processual civil da Faculdade de Direito da USP e advogado; mestre em direito processual civil pela Faculdade de Direito da USP e advogado

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Fonte: Jornal Valor 09.11.2016